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Apesar da célebre estreiteza da memória nacional, há personalidades que sobrevivem ao tempo. É o caso de Luiz de Carvalho, o mais importante cantor da historia da musica evangélica brasileira, coube a ele alguns pioneirismos como gravar o primeiro LP do meio evangélico, introduzir o violão nos cultos, nos idos de 1950 quando este instrumento era considerado profano por ser associado à boêmia, jamais poderia ser usado no louvor a Deus.
Luiz marcou gerações com sua voz e estilo e foi o principal protagonista do cenário musical evangélico nos anos de 1950 e 1960. Gerações de ouvintes se emocionaram diante de suas interpretações inspiradas, como em: “Obra Santa, O Rei está voltando, A Deus toda Glória” e tantas outras que coroaram sua extensa carreira ou ministério, como ele prefere chamar. Atualmente o cantor permanece em atividade e com agenda cheia.
Dizer que Luiz de Carvalho é um artista rodado não é mera figura de retórica. Pois foi nas estradas Brasil afora que o cantor, ao longo dos anos, semeou a palavra de Deus com seu vozeirão. “A gente enchia o carro de discos e saia por aí”, lembra saudoso do tempo em que vivia como uma espécie de caixeiro viajante, levando a família e centenas de discos de vinil a tiracolo. Luiz foi pioneiro numa época em que termos como “mercado” e “gospel” passavam longa do arraial dos crentes. “Naquele tempo, ser cantor de música cristã era um sacerdócio”, frisa o artista. Ele desbravou um caminho difícil, percorrendo todo o Brasil, cantando e pregando a mensagem da cruz. Apesar de não ter um titulo de pastor – ele é Diácono da Igreja Batista Paulistana, a única da qual foi membro durante toda vida -, Luiz nunca deixou de falar da palavra de Deus em suas apresentações, seja nas modestas igrejinhas do interior ou nos grandes estádios abarrotados de gente. E muitas vezes sem um tostão no bolso, já que a cultura do cachê, a qual nunca se rendeu, só surgiu no meio evangélico muitos anos depois.
Era sempre a mesma coisa: “Chegar numa cidade, cantar, dormir, seguir adiante. Tem sido assim minha vida toda”, descreve. A prioridade sempre foi visitar igrejas.
Já cantou na Alemanha, Itália, Espanha, Estados Unidos e mais 20 países. Na Holanda participou de uma cruzada do evangelista americano Billy Graham. Mas o veterano não esconde que sua paixão sempre foi o Brasil: “não existe lugar melhor”. O segredo para tanto fôlego, Luiz tem na ponta da língua: “Faço com alegria e amor a obra de Deus, é isso que me mantém jovem”, resume.
Nascido em Bauru, interior paulista, no ano de 1925, ele nem sempre teve um repertorio consagrado ao Senhor. Muito antes de se apresentar para platéias evangélicas, Luiz cantou em palcos bem menos abençoados. Com apenas oito anos já se apresentava em programas de calouros de cabarés e boates, ambientes nada apropriados para garoto de sua idade, muitas vezes teve de fugir do juizado de menores. “Quando o oficial de justiça aparecia eu dava um jeitinho de me esconder. Assim que ele ia embora, subia de novo no palco”, conta, sorrindo.
Aos dez anos, caçula de uma família de 12 irmãos, o meninote saiu de casa com o consentimento dos pais para ganhar a vida cantando. “Meu pai sempre me deu apoio. O velho sabia que meu destino era ser cantor”, revela. Cantar foi à maneira que encontrou para ganhar um dinheirinho, que seus pais Augusto José de Carvalho e dona Ema nem sempre podiam lhe dar. Chegou a morar em pensões com amigos músicos nas cidade de Marília e Garça, também no interior paulista.
Devido ao talento precoce, ainda adolescente já tinha contrato assinado e começou a ser conhecido como o “Menino de Ouro”. Mas a juventude chegou e Luiz de Carvalho resolveu aproveitar as oportunidades que a vida lhe dava. Era a estrela dos clubes, festas e bailes de formatura, interpretando boleros e canções carnavalescas. Como o jogo de azar ainda era permitido no Brasil, o artista chegou a se apresentar nos então famosos cassinos da Urca, no Rio de Janeiro e Quitandinha, em Petrópolis. “Também fiz sucesso no Montserrat, em Santos.” Por volta de 1942, Luiz já tinha seu próprio conjunto, o Havaiano, com vários músicos e bailarinos. “Era um grupo requintado, com excelente nível musical. Cantávamos samba-canção, boleros e marchinhas.” Em plena era do radio, artistas com aquele perfil eram muito requisitados, inclusive no exterior – Luiz e os companheiros chegaram a cantar na Argentina, México, Peru e Chile. A ribalta lhe trouxe o que nas suas palavras, é o tripé de um homem sem Deus: fama, dinheiro e mulheres. “Eu experimentei de tudo. Levava uma vida de promiscuidade e no carnaval então, pulava três noites seguidas.”
A guinada que pôs fim aquele promissor talento da MPB e fez nascer um astro da musica sacra aconteceu em 1947. Luiz de Carvalho e seu conjunto foram se apresentar na cidade de Tupã (SP). Horas antes do show, ele e outros companheiros davam uma volta pela cidade quando viram um grupo reunido numa esquina. No meio, um sujeito de paletó e gravata desafiava os transeuntes: “Onde você vai passar a eternidade?”, indagava, com olhar profundo. “Eu até me senti ofendido, mas logo entendi que o homem não estava se dirigindo diretamente a mim”, conta Luiz. Intrigado, chegou mais perto para escutar que história era aquela. O pregador citou as palavras de Jesus registrada em Mateus 11.28: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e oprimidos e Eu vos aliviarei”. Alguma coisa então aconteceu com o cantor. “Aquele pregação me fez ver o vazio que sentia na alma. Decidi procurar uma igreja para ouvir mais”, lembra.
O pessoal do Havaiano foi embora, mas Luiz permaneceu em Tupã e foi conversar com um pastor. Disse-lhe que estava se sentindo meio estranho, sem conseguir esquecer o que ouvira no culto ao ar livre. Ganhou um exemplar do Novo Testamento, livrinho que “devorou” inteiro três vezes num único mês. Decididamente, algo mudara em sua vida. Continuava a cantar, mas nos intervalos dos shows corria ao camarim para dar mais uma lida no texto sagrado. “Comecei a conhecer uma paz que não conhecia”, descreve. Já convencido de que a vida que levava não agradava a Deus, Luiz estava disposto a abandonar tudo. Mas ainda tinha compromissos em contrato. “Se não os cumprisse teria de pagar uma multa alta”, conta. Além disso, era fumante e achava que Jesus não o aceitaria com seus hábitos. Resolveu então voltar a Tupã para aconselhar-se com aquele pastor. O pastor então pediu que se ajoelhasse e repetisse com ele uma oração de conversão. Aos prantos Luiz interrompeu o pastor e terminou de orar sozinho. Ao se levantar, mostrou o contrato e perguntou ao ministro do Evangelho se deveria rasgá-lo. “Para minha surpresa, ele me aconselhou cumpri-lo, mas que não renovasse”, relata. No fim do compromisso, despediu-se dos companheiros, abandonou o conjunto e tornou-se membro da Igreja Batista Paulistana.
Com apenas 22 anos Luiz já responsável por si mesmo, arrumou emprego numa firma de cobranças na capital paulista. Como queria dedicar-se a música cristã, matriculou-se no Conservatório Carlos Gomes de Música, com ajuda da igreja. De vez em quando cantava hinos nos cultos. Sua bela voz chamou a atenção dos irmãos. “Então, sugeriram-me que gravasse hinos de louvor a Deus”, diz. Empenhado em angariar recursos para a construção do templo, o dirigente da congregação teve uma idéia: “O pastor Juvenal Ricardo Meyer me fez uma proposta – a igreja pagaria a gravação e a venda dos discos financiaria a obra do templo. Eu topei na hora e fiz então meu primeiro LP, em 78 rotações”. O resultado não poderia ser outro: os discos venderam como água, o templo foi erguido e o nome de Luiz de Carvalho, conhecido pelo povo evangélico.
Através dos discos Luiz começou a ser convidado para campanhas evangelísticas. “Eu ia, cantava e dava meu testemunho. Muita gente se convertia nessas ocasiões.” Certa vez num culto na Bahia, mas de cem pessoas atenderam ao apelo que fêz. Aquela altura já se dedicava totalmente ao ministério itinerante. “Eram tempos bem difíceis, mas graças a Deus nunca faltou nada para mim e minha família”, regozija-se. Os Carvalhos viviam apenas das ofertas que o cantor recebia nas igrejas que visitava. Mas vender discos de louvor era uma dificuldade. Alem do preconceito dos crentes da época, não existiam rádios evangélicas e as seculares nem queriam ouvir falar em musica sacra. Sem qualquer esquema de divulgação, a única alternativa era recorre à propaganda boca-a-boca.
Mesmo assim a fama o precedia em suas viagens. Certa vez, em 1959, a caminho do Recife (PE) com a mulher, Adelina, e os quatro filhos – Elias, Davi, Marta e Luiz Roberto – no Jipe, Luiz parou num posto de beira de estrada. Queria abastecer, mas percebeu que estava sem dinheiro. O dono do posto, assim que o viu, mandou o frentista encher-lhe o tanque. Sem entender nada, o cantor ainda ganhou um abraço. “Ele era de uma igreja Presbiteriana da cidade e me disse que a gasolina era um presente para que eu pudesse continuar meu trabalho de evangelização”, lembra. Aquela campanha foi uma das mais difíceis de sua vida – o caminho até o Nordeste o obrigou a passar por maus pedaços com as estradas esburacadas e perigosas. “Mas valeu a pena, pois muitas almas se renderam a Cristo naquela oportunidade. Foi uma benção.”
Não foi apenas percorrendo os rincões do Brasil que Luiz escreveu seu nome na historia da musica cristã brasileira. Ele também foi pioneiro da indústria fonográfica evangélica do país, setor que movimenta hoje milhões de reais. “Fui privilegiado por ter gravado o primeiro LP evangélico do Brasil, em 1958, intitulado “Boas novas”, conta Luiz. Até hoje o cantor guarda com carinho o “bolachão”. Ele foi também meio sem querer, o protagonista do primeiro videoclipe gospel – Os melhores momentos de Luiz de Carvalho, produzido por um cinegrafista americano, com imagens de estúdio e externas.
Mas é claro que nem todo mundo via o artista com bons olhos. Quando Luiz teve a ousadia de entrar numa igreja com o violão debaixo do braço, foi um escândalo. Afinal, o instrumento associado à boemia, era visto pelos crentes como profano. Pior foi quando começou a cantar hinos de louvor em ritmo de marcha e bolero. No inicio o artista se constrangeu com a resistência, mas seguiu o conselho do seu pastor Juvenal Meyer. “Ele me disse que o tempo é o maior amigo dos justos e o pior inimigo dos injustos. “Graças a Deus tinha razão”, suspira.
Apesar da modéstia com que fala de sua vida, Luiz não esconde uma ponta de orgulho quando conta que cantou para um publico de mais de 120 mil pessoas. Foi no estádio do Maracanã em 1965. Ele foi convidado pelos organizadores da primeira cruzada de Billy Graham em terras brasileiras. Naquele instante, conta, um filme passou em minha cabeça: “Lembrei de quando me converti os meus colegas do conjunto Havaiano disseram que eu nuca mais teria publico com aquele negocio de Jesus. Quando subi no palco do Maracanã, senti a voz de Deus me falando que aquele auditório era para mim. Foi uma das maiores emoções da minha vida”.
Artista exclusivo da gravadora Bom Pastor há quase trinta anos, Luiz de Carvalho procura manter-se fiel ao estilo que o consagrou. Todavia não deixa de se reciclar, sem, no entanto, render-se a modernismos. “Sou bastante eclético, pois busco alcançar todas as faixas de idade, inclusive os jovens”, define. É possível perceber isso em seu CD “Dia da Vitória”, a faixa que abre o CD é “Não há Deus maior”, cântico de louvor bem conhecido das igrejas, além do tradicionalíssimo “O Rei está voltando”. Há até um reggae, “Deus Gracioso”, cheio de balanço.
Embora bonachão Luiz não deixa de criticar muita coisa que vê na música gospel de hoje. O pior de tudo, aponta, é a mercantilização. “Existe musica para adorar a Deus e a musica feita para render dinheiro. É coisa descartável que logo desaparece”, desdenha. O veterano também não abre mão do compromisso com Deus. “Levita de Deus tem de ter vida de santidade”, pontifica. “O compromisso com o Senhor é o diferencial que faz com que um cantor permaneça.”
Perguntado sobre sua maior decepção, Luiz aponta para a morte sua primeira mulher Adelina, com quem foi casado por mais de quarenta anos. Ela foi vitima de um aneurisma cerebral em 1968. “Fiquei arrasado, não tinha vontade para fazer nada”, confessa. A viuvez durou três anos. Numa de suas andanças pelo Sul do Brasil, conheceu uma pianista chamada Ernestina, solteira, que embora trinta anos mais nova, se apaixonou por aquele “coroa”. Tina, como é chamado em família, trouxe a Luiz mais do que companhia. Em 1990, o cantor teve uma filha temporã, Priscila, que hoje divide os palcos com ele.
Quando não esta viajando Luiz gosta de prazeres simples. Um deles é o chimarrão. O cantor sorve cuias e mais cuias da bebida, ainda mais se o papo estiver bom. “Casado com uma gaucha, não poderia ser diferente”, brinca. Tina fala de sua intimidade: “O Luiz é muito bem humorado e brincalhão, ele nunca está triste”. A companheira o define como ótimo pai e marido, caseiro até demais. “Ele é igual a cuco de relógio: só sai de casa para cantar”, diverte-se. Jackson Rondini, atual pastor da Igreja Batista Paulistana, prefere destacar a humildade da ovelha famosa. “Ele é daqueles crentes que querem serviço. Um domingo por mês vai para a cantina servir aos irmãos.” Além de atuar com diácono, Luiz é professor da classe de novos convertidos na escola Dominical.
Luiz de Carvalho vive com modéstia. Seus rendimentos são a pequena aposentadoria, direitos sobre os álbuns e ofertas que recebe. “Eu me sinto realizado”, sintetiza o cantor. Mesmo assim admite que gostaria de fazer algumas coisas. Uma delas é montar sua própria orquestra: “Seria uma forma de levar cultura musical para as pessoas. Musica de qualidade, não somente espiritual, mas técnica”.
Mesmo com toda a experiência, Luiz diz que todo dia aprende coisas novas. “Uma delas é descansar na vontade do Senhor”, aproveita para dar um conselho aos cantores evangélicos de hoje: “Procurem viver o que cantam. Deus quer usar pessoas limpas, que dêem testemunho e tenham um compromisso com sua Palavra. Adoradores em espírito e em verdade, como diz a Palavra.
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